D.Maria I: louca, piedosa ou uma incógnita?
Os quinze anos em que D. Maria I (1734-1816) governou efetivamente sempre foram reduzidos pelos historiadores a um “enclave” entre o reinado de seu pai, D.José I (1750-1777), dominado pela figura marcante do seu valido, o marquês de Pombal (1699-1782), e o de D.João VI (1792-1826). Achincalhada por historiadores republicanos como J.P. de Oliveira Martins (1845-1894) e outros tantos, a rainha sempre foi vista como uma fanática religiosa que teria sido levada à insânia por seus conselheiros e confessores de batina. A historiadora Luísa Viana de Paiva Boléo em “D. Maria I a Rainha Louca” (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009) não refaz totalmente essa imagem, mas também não a acentua, procurando reconstituí-la com equilíbrio, reconstruindo não só o período de sua reinação como a sua vida singular. O resultado é um retrato não só inédito desta mulher aclamada rainha a 13 de maio de 1777, aos 43 anos de idade, mas fidedigno, mais condizente com o que se sabe do período e de como se comportavam as famílias reais. Sem deixar de reafirmar o seu caráter de mulher caridosa e devota, que lhe valeu também o epíteto de Piedosa, a biógrafa mostra ainda que D.Maria foi uma mulher culta, que se preocupou em promover as artes e as ciências. E que levou a sério suas funções de governante sempre em nome dos interesses de Portugal.
De sugestão fica a hipótese que a historiadora Maria Helena Carvalho dos Santos, professora jubilada da Universidade Nova de Lisboa, avança no esclarecedor prefácio que escreveu para esta obra: a de que seria interessante fazer-se uma investigação mais apurada na documentação em busca das razões que teriam levado ao impedimento de D.Maria I, lembrando que muitas intrigas na corte ocorreram em 1792 ao tempo em que foi declarado o seu afastamento sob a alegação de uma possível insanidade mental.
Talvez tenha sido coincidência, mas é, no mínimo, curioso que a debilidade real tenha se manifestado em 1792, quando o príncipe D. João já tinha 25 anos e andava cercado por uma corte ambiciosa de poder e mudanças, como assinala Luísa Boléo. É possível que a rainha apresentasse sinais de melancolia e depressão, a uma época em que não existiam tratamentos para esse tipo de doença, mas é bastante plausível também a hipótese de que o afastamento da rainha tenha sido apressado por aqueles que viam na ascensão de um príncipe jovem a oportunidade de empolgar o poder por meio de um golpe de estado palaciano, não declarado. É de lembrar que D.João só seria declarado regente em 1799, quando a rainha tinha 65 anos, e que reinou por sete anos em seu nome.
Antes disso, a rainha, desde que assumira em substituição a seu pai em 1777, nunca se mostrara incapaz ou menos disposta aos assuntos da governação, exercendo o poder em sua plenitude. Houve, inclusive, uma tentativa de levá-la a assinar um documento que absolvia os Távoras e ela não se mostrou disposta a ir contra a decisão do próprio pai e rei. Como se sabe, os Távoras estiveram implicados no atentado a d.José I em 1758 e tiveram morte atroz. Ainda influentes na corte, os partidários dos Távoras patrocinaram um processo que visava a reabilitá-los, mas que se arrastou até 1781, sem que nunca tenha tido o desfecho que esperavam.
Por essa época, a rainha teria tido uma crise de fúria, atribuída à excessiva influência religiosa que recebia, mas tudo isso também pode ser visto por outro ângulo: se estava fora de seu juízo, por que a rainha não foi declarada louca a esse tempo? E como se pode entender que o país tenha sido governado por uma pessoa insana por tantos anos? Está claro que, por trás dessa história, haveria muitos interesses subalternos em jogo que documentos pouco analisados ou mesmo desconhecidos poderiam trazer à luz.
Não se pode esquecer que D.Maria Francisca, princesa da Beira, nascida no Paço da Ribeira, filha de D.José de Bragança e de D.Mariana Vitória de Borbón, teve uma vida atribulada: viveu a catástrofe que foi o terremoto de 1755, que destruiu Lisboa e localidades vizinhas, assistiu à execução brutal de alguns nobres acusados de conspiração, sofreu perseguições por parte do marquês de Pombal, homem de confiança de seu pai, mas teve forças para assumir o cetro e, mais importante, para afastar o ministro tão logo assumiu. Em menos de dois anos, viu morrer o marido, D.Pedro III (1717-1786), seu tio, que, segundo o testemunho de estrangeiros contemporâneos, não seria uma inteligência privilegiada, pelo contrário, e seu filho primogênito, D.José (1761-1788), causada por varíola (bexigas), a uma época em que o príncipe já estava casado e pronto para sucedê-la se tivesse herdeiro. Viu ainda a morte de sua filha e de seu genro espanhol, além da de seu confessor, frei Inácio de São Caetano.
No plano externo, acompanhou com apreensão a má sorte da família real francesa depois da Revolução de 1789 e teve de enfrentar a astúcia e a ambição dos ingleses que, a pretexto de garantir a existência do pequeno reino diante do vizinho, a poderosa Espanha, o que mais faziam era saquear o país e suas colônias, especialmente o Brasil. Tantos sobressaltos em tempos tão conturbados são considerados fatores decisivos para que perdesse a paz de espírito e a sanidade mental, mas isso é apenas uma ilação sem maiores comprovações históricas e documentais.
Obviamente, Luísa Boléo não nos responde essas dúvidas — nem esse foi o objetivo de seu trabalho —, mas nos mostra o outro lado de uma história até hoje mal contada, desde o nascimento da rainha a 17/12/1734, passando por manobras que tentaram evitar sua presença no trono — talvez porque fosse mulher, embora em Portugal não vigorasse a lei sálica —, até a sua ascensão ao poder e o exercício de um governo que, mesmo recebendo uma herança maldita, soube como assinar a paz com a Espanha, equilibrar a economia e manter a reforma do ensino laico, embora a tenham acusado de ser uma beata, sem levar em conta que a suposta fanática religiosa nunca escolheu um eclesiástico para o seu governo nem revogou a decisão de seu pai que expulsara os jesuítas do Reino e de suas colônias.
Seja como for, o que se pode concluir é que, ao seu tempo, D.Maria foi uma rainha popular, famosa por suas atitudes de benemerência. Basta ver o que disse dela o potentado santista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) em elogio acadêmico, a uma época em que nem imaginava que, um dia, seria figura decisiva na separação do Brasil de Portugal e passaria para a História como o patriarca da independência: “(...) quanto mais humildes e desvalidos eram os que pediam audiências, com tanto maior gosto a Rainha ouvia as suas petições e respondia aos seus queixumes”.
Ao contrário de outros historiadores, Luísa Boléo preferiu não dar nenhum palpite sobre o número de pessoas que acompanharam o príncipe regente em sua viagem ao Brasil ao final de 1807. Nem repetiu exaustivamente os mais disparatados números exibidos por outros historiadores sem apresentar nenhuma fonte de arquivo que pudesse avalizá-los, mas reconheceu que há um exagero nas estimativas que apontam para 10, 12, 15 e até 20 mil pessoas que teriam atravessado o oceano àquela época.
Como não teve a oportunidade de compulsar os documentos de arquivo, preferiu ficar com os dados de quem realmente tem estado anos a fio em arquivos brasileiros e portugueses, o arquiteto e historiador Nireu Oliveira Cavalcanti, autor de “O Rio de Janeiro Setecentista: a Vida e Construção da Cidade da Invasão Francesa Até a Chegada da Corte” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004), que aponta para cerca de 500 o número de acompanhantes. Por sugestão deste articulista, Luísa Boléo conversou pessoalmente com o historiador em Lisboa, que, mesmo com margem de erro, lhe teria admitido que até 1500 pessoas, “entre fidalgos com familiares, criados de ambos os sexos e pessoal administrativo” (pág.299), poderiam ter acompanhado o príncipe.
É verdade que citou a informação do irlandês Thomas O´Neill, tenente da esquadra inglesa que acompanhou D.João e família ao Brasil, segundo a qual teriam sido 15 mil os acompanhantes, mas para contestá-la e considerá-la um tabu de 200 anos que só recentemente um historiador, de fato, ousou colocar em xeque.
Na história do Brasil, é claro, D.Maria também nunca foi bem vista, embora tenha vivido na terra brasileira nove anos, até a morte em 1816, afastada de qualquer questão de governo ou de facções palacianas, sempre bem assistida pelo filho, o príncipe regente D.João, segundo testemunhos da época. É que em 1792 a rainha assinou a sentença que condenou à forca o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e ao desterro outras pessoas comprometidas com a conspiração de 1789 em Minas Gerais.
É de assinalar que Tiradentes só ascendeu a mártir nacional depois da queda da monarquia em 1889, tornando-se um ícone republicano. E que à época não haveria outro desfecho para aqueles que conspiravam contra o trono. Dos papéis, o que se conclui é que havia alguns homens de dinheiro — especialmente, ex-arrematantes de contratos endividados com a Coroa — comprometidos com a conspiração, mas que o peso maior recaiu sobre o alferes que, aliás, se não era um magnata, também não era o pobretão que comumente se imagina.
Além disso, se a conjuração mineira tivesse obtido êxito — e teve todas as possibilidades de dar certo não só em razão das circunstâncias geográficas de Minas como em função da debilidade das forças do Reino para uma reação —, provavelmente, o Brasil não seria o que hoje conhecemos e, sim, um território retalhado por pequenas repúblicas como a América espanhola.
Luísa Viana de Paiva Boléo, nascida em Coimbra, é licenciada em História e tem se destacado por sua colaboração em jornais e revistas de Portugal, como “Máxima”, “Expresso”, “Público” e “Notícias Magazine” do “Diário de Notícias”. É responsável pelo site www.leme.pt que reúne pequenas biografias de muitas mulheres e alguns homens que se notabilizaram na História portuguesa e mundial.
Foi responsável pela revista da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Gênero. É sócia da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres (Apem) e da Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, onde colabora nas tertúlias. Dedica-se a vários estudos de história e cultura do Brasil, tendo dado na Universidade de São Paulo uma conferência sobre “Literatura de Cordial: diferenças entre Portugal e Brasil”. Em 2004, publicou “Casa Havaneza, 140 Anos à Esquina do Chiado” (Lisboa: Dom Quixote), livro evocativo dos costumes e vivências de uma casa comercial famosa e procurada por todos os turistas e de uma localidade tradicional da capital lisboeta.