Mais de cinqüenta anos já se passaram desde o cessar-fogo entre a Coréia do
Norte e a Coréia do Sul. Mas, para quem vive na fronteira entre os dois países,
o tempo parece não ter passado. Todos os dias militares armados até os dentes
perambulam de um lado para outro. A missão da soldadesca é patrulhar a chamada
“zona desmilitarizada”, a disputada terra de ninguém que divide o território
coreano no paralelo 38. A vigília ininterrupta tem explicação. Tecnicamente, a
guerra da Coréia não terminou: o armistício foi assinado em 27 de julho de 1953.
Só que não houve um acordo formal de paz. Até hoje, a faixa que corta a
península ao meio é cercada por barreiras de arame farpado. De um lado, mais de
um milhão de soldados norte-coreanos protegem seu pedaço. A outra porção conta
com 660 mil combatentes sul-coreanos e 37 mil americanos. Todos de prontidão 24
horas por dia. Ironicamente, a “zona desmilitarizada” é a mais militarizada do
mundo.
Pela faixa de terra de 4 quilômetros de largura já marcharam tropas do norte
e do sul, ambas interessadas em construir uma única Coréia. A diferença é que o
norte sonha com uma península comunista. E o sul, com uma democracia
capitalista. A luta pela unificação do país começou às 4 horas da manhã do dia
25 de junho de 1950, em um ataque-surpresa do Exército Popular da Coréia do
Norte. Uma imensa força invasora de 135 mil homens, com apoio material da União
Soviética, atravessou o paralelo 38 em direção à capital sul-coreana. O
resultado foi arrasador. Como se não bastasse estar em desvantagem militar – com
menos homens e equipamentos –, metade dos soldados sulistas havia deixado seus
postos na fronteira para passar o final de semana com a família.
Na manhã daquele mesmo dia, o líder norte-coreano, Kim Il-sung, o mais
longevo ditador da história, justificou o ataque em discurso à rádio oficial de
Pyongyang. Em mensagem endereçada ao povo da Coréia do Sul, disse que a invasão
era uma resposta à “investida injusta” feita pelas forças armadas da República
da Coréia. Na verdade, a ofensiva tinha sido motivada por outra razão: o
esperado apoio da União Soviética. Há alguns anos, o ditador vinha tentando
convencer o aliado comunista a dar o sinal verde para a investida contra a
porção sul da península. O jornalista e professor de Relações Internacionais da
Universidade John Hopkins, Don Oberdorfer, revela em seu livro The Two Koreas
(“As Duas Coréias”, inédito no Brasil) que, em diversas circunstâncias nos anos
de 1949 e 1950, Kim implorou a Joseph Stalin e seus diplomatas que autorizassem
a invasão. Em uma das ocasiões, disse a uma autoridade soviética: “Ultimamente,
não tenho dormido à noite, pensando em como resolver a questão da unificação de
todo o país. Se a questão da libertação do povo da porção sul da Coréia e da
unificação da nação for prolongada, posso perder a confiança do povo.”
Conquista de Seul
Nas semanas que se seguiram ao ataque, Kim teve motivos de sobra para não
pregar o olho. Rapidamente, as forças comunistas rumaram em direção a Seul.
“Nossa corporação tinha uma ordem de ocupar a parte leste de Seul e completar
sua missão em 48 horas”, conta o general Choe Lin, chefe da 2ª Corporação. Essa
era tarefa fácil para os tanques T-34 de fabricação soviética, que nem se
abalavam com os tiros de artilharia de 57 mm ou foguetes de 2,36 polegadas, as
principais armas contra blindados das forças inimigas. Os carros de combate
entraram nos arredores da capital sul-coreana à 1 hora da madrugada de 28 de
junho. E às 2h15, Seul caiu. Em pouco tempo, os soldados do norte tomaram
controle de quase toda a península, deixando os defensores encurralados em um
pequeno canto do sudeste do país, conhecido como o “perímetro de Pusan”.
Foi somente após a queda de Seul que os Estados Unidos perceberam o real
perigo do avanço comunista na península coreana. Até então, a Coréia do Sul não
era uma prioridade para a política externa americana, que considerava o país uma
área auxiliar para a segurança e defesa do Japão. Em 1949, por exemplo,
retiraram suas forças de ocupação da metade capitalista, deixando apenas um
pequeno número de assessores militares. A medida podia parecer drástica, mas,
afinal, a União Soviética também havia retirado suas tropas da península. A
diferença foi que os soviéticos tiveram a precaução de fazer isso só depois do
estabelecimento de um exército bem equipado e treinado no norte. O ataque de
Kim, no entanto, despertou os americanos. Na tarde de 25 de junho, o presidente
Harry Truman reuniu-se com seus principais conselheiros. Eles foram unânimes em
reconhecer a gravidade da situação e concordaram com o general Omar Bradley,
chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Na opinião do general, a Rússia “ainda
não está preparada para a guerra, mas obviamente os russos estão nos testando na
Coréia, e a linha deve ser traçada agora”. A Guerra Fria começou a
esquentar.
Guerra Fria
O presidente americano determinou o envio de armas para o exército
sul-coreano. E também autorizou o general Douglas MacArthur a dar proteção
militar para a entrega do material, assim como para a evacuação dos americanos
da região. No dia 29 de junho, Truman decidiu também enviar ao país duas
divisões de soldados americanos que estavam no Japão. Afinal, a situação estava
cada vez mais quente naquelas bandas. O ditador Kim Il-sung havia deixado claro:
não aceitaria a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, adotada em
25 de junho por 9 a 0, com a abstenção da Iugoslávia, que exigia que a Coréia do
Norte retirasse suas tropas o mais rápido possível do solo sul-coreano. “A
guerra da Coréia estabeleceu a Guerra Fria e fez com que a península coreana se
tornasse o centro da atenção global”, avalia Oberdorfer.
O clima esquentou ainda mais quando o Ocidente decidiu se unir para conter o
avanço comunista. Dois dias depois do pronunciamento do líder norte-coreano, as
Nações Unidas solicitaram aos países membros ajuda para a Coréia do Sul. No
total, além dos Estados Unidos, 15 países enviaram cerca de 300 mil soldados
para a região. O contra-ataque teve início em 15 de setembro, quando o general
MacArthur desembarcou suas tropas na cidade portuária de Inchon, na porção oeste
da península. Era uma manobra arriscada: os soldados precisavam vencer as marés
imprevisíveis de um porto rochoso e escalar paredões de quase 6 metros para
então enfrentar uma ilha fortificada e uma cidade ocupada por forças
norte-coreanas. Mas, contrariando todas as previsões pessimistas, o general
americano liderou uma jogada de mestre. Após um bombardeio preparatório, dois
batalhões entraram em Inchon, batendo a resistência com poucas baixas. Ao mesmo
tempo, os americanos romperam o cerco a Pusan e iniciaram uma investida em
direção ao norte. Os comunistas entraram em pânico e bateram em retirada. E o
que era imaginável aconteceu: os ocidentais recapturaram Seul.
O general MacArthur poderia ter parado no paralelo 38, já que a Coréia do Sul
estava livre. Mas agora os Estados Unidos tinham outros planos: queriam unificar
a Coréia sob um único governo pró-ocidente. MacArthur também acreditava que
aquele era um momento favorável para um golpe decisivo contra o comunismo. Em 30
de setembro, ele mandou um recado para Kim Il-sung: os comunistas deveriam depor
as armas e se render. O supremo comandante do Exército Popular ignorou o
ultimato do general americano e, imediatamente, o exército das Nações Unidas
atravessou o paralelo 38. Em sua marcha para o norte, deram o troco e tomaram a
capital do norte, Pyongyang, em 20 de outubro.
A China entra na briga
A ousadia do Ocidente teve um preço alto: a entrada da China no conflito.
Pequim já havia sinalizado que não toleraria a aproximação das tropas lideradas
por MacArthur do território chinês. Alguns dias depois que os soldados das
Nações Unidas cruzaram o paralelo 38, centenas de milhares de chineses invadiram
a península coreana pela Manchúria. “Todo o povo chinês decidiu,
voluntariamente, dedicar-se ao dever sagrado de resistir à América, ajudando a
Coréia do Norte e defendendo seus lares e suas terras”, declarou o líder chinês
Mao Tsé-tung, em novembro. A guerra tomava novos rumos. Sob o comando do célebre
líder guerrilheiro Lin Piao, os chineses reconquistaram a capital do norte em 4
de dezembro. A massa de soldados também fez com que as tropas das Nações Unidas
batessem em retirada desordenada. E, em 4 de janeiro de 1951, Seul foi novamente
capturada pelos comunistas. Abalado, o general MacArthur avisou Washington.
“Estamos enfrentando uma guerra completamente nova”, declarou. Para ele, medidas
mais duras precisavam ser tomadas.
Por pouco o mundo não assistiu à Terceira Guerra Mundial. “Pesquisas recentes
revelam que o presidente Truman esteve muito perto de utilizar bombas atômicas
contra cidades norte-coreanas e chinesas em abril de 1951. Mas ainda sabemos
muito pouco sobre esse grande segredo”, revela o professor da Universidade de
Chicago, Bruce Cumings, especialista em História da Coréia. A eclosão de um
conflito total só foi evitada graças à moderação de Stalin durante a refrega,
segundo o especialista. “Diria que a cautela de Stalin foi mais importante que
qualquer outra coisa para impedir a Terceira Guerra. Cinicamente, ele se
distanciou de Kim Il-sung após a ocupação americana da Coréia do Norte e estava
feliz em ver os americanos entrarem em guerra com a China”, avalia Cumings.
“Stalin não queria que a guerra assumisse proporções globais. Ele sabia que
perderia a um preço terrível, já que os Estados Unidos tinham pelo menos 350
bombas atômicas e a União Soviética, cerca de 25”, acrescenta.
Em 1951, os líderes chegaram à conclusão de que a guerra havia ido longe
demais. Ambos os lados viram-se diante de um estado de impasse, com a
recuperação do exército das Nações Unidas que, em 30 de abril, avançou a linha
de frente para os arredores do paralelo 38. Assim como no início do conflito, os
inimigos se defrontavam na faixa de terra que divide as duas Coréias. Foi então
que o presidente americano anunciou que as Nações Unidas estavam dispostas a
assinar um cessar-fogo. Mas, antes de levar a cabo sua estratégia, teve de
enfrentar um “adversário” muito próximo: o ambicioso general MacArthur. Ele
defendia um ataque direto à China e pronunciou aos quatro ventos sua opinião.
Foi a gota d’água. O presidente exonerou MacArthur por insubordinação em abril e
as negociações de paz tiveram início em 10 de julho.
As conversações se arrastaram por dois anos, com intermináveis discussões
sobre questões como a repatriação de prisioneiros e o posicionamento da linha de
armistício. A morte de Stalin, em março de 1953, acelerou o processo. E, em 27
de julho de 1953, o armistício acabou, enfim, assinado, com o estabelecimento da
fronteira no paralelo 38 e a criação da Zona Desmilitarizada – mais conhecida
pela sigla em inglês DMZ. Com o armistício, a sombra de uma guerra mundial se
dissipou. Mas a península coreana estava devastada. Embora os números sejam
incertos, estimativas indicam que, em três anos de conflito, as tropas
comunistas sofreram baixas de 900 mil chineses e 520 mil norte-coreanos. Do lado
inimigo, mais de 130 mil soldados sul-coreanos e 54 mil combatentes americanos
morreram durante a guerra. O embate deixou marcas profundas nas duas Coréias.
Com o fim da década de 80 e o fim da União Soviética, a perda do auxílio fornecido pelos soviéticos foi um duro golpe contra a Coreia do Norte. Além disso, quando a China reconheceu a Coreia do Sul em 1992, a Coreia do Norte se sentiu traída e cada vez mais isolada. "Sua economia estava em queda livre desde o colapso do bloco soviético'', afirma o escritor e especialista em Coreia do Norte Paul French. "A economia ia mal, a indústria foi reduzida à metade. Os mercados do bloco do Leste sumiram. A agricultura norte-coreana ruiu, e o país enfrentou fome em meados da década de 90", diz French. O programa nuclear do país, que teve início na década de 60, segundo o ex-embaixador John Everard, se tornou cada vez mais importante. "À medida que o ambiente internacional se voltou contra a Coreia do Norte, seus líderes começaram a encarar o programa nuclear como garantia de sua existência como um Estado independente''.
O trunfo nuclear
O ''Grande Líder'' Kim Il-sung, seguido pelo seu filho, o "Querido Líder" Kim Jong-il e agora seu neto e "Líder Supremo" Kim Jong-un contaram todos com um importante trunfo - a grande moeda de troca nuclear'', afirma French. Mas o programa nuclear da Coreia do Norte se tornou a principal fonte de tensão com o Ocidente, e os Estados Unidos e a Coreia do Norte chegaram à beira de um conflito inúmeras vezes. Um exemplo foi em 1994, durante o governo do presidente americano Bill Clinton, quando Pyongyang seguia violando acordos internacionais sobre inspeções de suas instalações nucleares. Em 2002, as tensões com a Coreia do Norte ressurgiram quando o governo do país expulsou inspetores nucleares em meio a temores de que o país estava desenvolvendo, em segredo, armas nucleares. ''A Guerra da Coreia ainda não terminou por completo. As velhas inimizades permanecem, ao menos aos olhos de Pyongyang'', afirma Paul French. "Seul seguiu adiante e se tornou uma próspera democracia. O Norte se manteve como que numa redoma desde os anos 1950, se colocando em uma narrativa histórica como vítima e apenas agora com uma capacidade nuclear que exige a atenção de todos.''
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/coreia-guerra-inacabada-433995.shtml
http://www.bbc.co.uk/portuguese/celular/noticias/2013/04/130410_coreia_guerra_permanente_bg.shtml
Imagens: mafarricovermelho.blogspot.com - telecastdehistoria.blogspot.com - www.jlnews.com.br - dinizk9.blogspot.com